Outono 2020 – Palotina Ilhada

Reli, na semana passada, “O conto da Ilha Desconhecida”, do português José Saramago. Lembrei que há muito tempo Saramago caminha pelo meu desejo. Nosso primeiro encontro foi ano passado, num sebo de rua, em plena feira de domingo do Largo da Ordem, em Curitiba. Era domingo e podíamos caminhar pelas ruas – trocadas as roupas dos medos, que eram outros. No conto, somos conduzidos pelo desejo de um homem em descobrir uma Ilha Desconhecida; seu desejo o leva até a porta das petições de um rei, para o qual pede um barco que o conduza à sua descoberta. A desconhecida Ilha em que nos lançamos, alguma vez na vida, para distantes de nós mesmos, nos encontrarmos. Mas não é dessa Ilha que falo agora.

Falo de outra ilha imaginária construída num espaço real e vulnerável. Palotina acredita-se uma Ilha em meio à pandemia. Intocável. Inacessível a um vírus que já registra oitenta mil mortes por todo o mundo – aproximadamente setecentas só no Brasil [1].

Na contramão das medidas adotadas pelo Estado, por recomendação da Organização Mundial de Saúde, a OMS, e do Ministério da Saúde, no dia 27 de março, a Prefeitura Municipal de Palotina, comandada pelo prefeito Jucenir Stentzler, do Partido Social Cristão, o PSC, publicou o decreto nº 9.653, revogando o decreto nº 9.649, estabelecendo a reabertura do comércio à partir do dia 30 de março. Novo decreto publicado no dia 06 de abril restringiu atividades, mas ainda permite a livre circulação de pessoas pelo comércio, expondo principalmente trabalhadoras e trabalhadores ao novo coronavírus.

O mesmo equívoco cometido pelo governo italiano, quando encabeçou a campanha #MilãoNãoPara, desconsiderando o avanço da doença. Em 27 de fevereiro, a Itália registrava 12 mortos. Hoje, são mais de dezessete mil mortes registradas por Covid-19 no país.

A cidade construída por descendestes de imigrantes italianos e alemães, que leva em seu nome uma homenagem ao santo ítalo São Vicente Palotti e seus seguidores, os padres Palotinos, é uma cidade ilhada no seu egoísmo e irresponsabilidade social. Cidade ilhada na ignorância, na falsa fé cristã, na falta de empatia, onde apenas o argumento econômico tem validade. As ruas continuam cheias, as pessoas seguem acreditando que estão imunes e distantes de tudo.

O prefeito, com bíblia e o padroeiro da cidade ao fundo, dialoga com a população em incansáveis transmissões ao vivo pelo facebook, evidenciando aqueles que estão ao seu lado e disputarão o próximo pleito eleitoral. Cidadãos armados com whatsapp e argumentos sem fundamentação científica, endossam o coro da ignorância evocado pelo presidente da República, aquele que governa para 10% da população que concentra 55% da riqueza nacional. Os mesmos 10% da população que não está exposta nas ruas.

A morte, hoje, no Brasil, é uma escolha política.

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[1] Ao começar a redigir esse texto, eram sessenta mil mortes por Covid-19 registradas em todo o mundo, dezesseis mil na Itália e quinhentas no Brasil.

Outono de 2020 – Fora da ordem

Para ler ao som de “Fora da ordem”, de Caetano Veloso

Laboratório da palavra

O ano iniciou com o prenúncio de que a China começava enfrentar uma crise na saúde. O jornal anunciava algo assustador e, ao mesmo tempo, tão distante. Nossa luta emergencial era a dengue – e segue sendo, ao menos aqui no Paraná. O Carnaval chegou e, ao final dele, a confirmação do primeiro caso em terras brasileiras. A imprensa incansavelmente noticiando a chegada do Coronavírus ao Brasil. Veio de classe A, com um empresário paulista que esteve na Itália.

Eu estava em São Paulo. Comecei a notar um movimento diferente nas ruas, de algumas pessoas com máscaras e uma campanha ainda tímida para uso de álcool em gel. Era o começo da maior pandemia mundial do Século XXI.

Assistimos, em tempo real, a doença se espalhando de forma exponencial, tomando novos países, estados, cidades e pessoas. Gente transformada em números. A ansiedade e o medo de um vírus desconhecido que se aproxima, dia a dia, cada vez mais. Secretarias Municipais, Ministério da Saúde e demais órgãos competentes diariamente divulgam boletins atualizados com o número de casos confirmados, suspeitos e mortos. Agora, no momento que escrevo, o país contabiliza 2915 infectados e 77 mortes – é dia 26 de março, quase oito da noite.

 “Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial” – e todo mundo sabe. Há um silêncio ensurdecedor pairando sobre a cidade. Portas, janelas, escolas, universidades e empresas fechados em todo mundo. A programação da TV foi alterada. Novelas suspensas por tempo indeterminado. Reprises. Plantão jornalístico vinte quatro horas por dia, sete dias por semana. Diálogos monotemáticos. Tentativas falidas de novos assuntos. A recomendação é que todos e todas que podem, fiquem em casa, lavem as mãos. Autocuidado é a bola da vez.

Voltar-se para dentro é um dos exercícios mais complexos do ofício de contar histórias. É necessário sair, conhecer, ver e ouvir. Olhar fundo nos olhos, remexer a história. Feito isso, a regra é clara: voltar-se para dentro. Observar a história, fazer dela sua companhia. Caminhar lado a lado, sentar-se com ela em meio ao círculo de outras paisagens e narrativas que já te habitam. Remexer fundo. Revisitar seu interior.

Famílias pelo mundo todo experimentam uma rotina compartilhada talvez antes não vivenciada. Pelo menos, não pelos mesmos motivos. Tomamos consciência de que vivemos um fato histórico. Uma história que não sabemos o final. Sem deixar-nos afogar pelas redes sociais, temos a possibilidade de nos ouvirmos, nos reconectarmos com as narrativas que nos constroem e nos alimentam. A nossa própria história.

Clarissa Pinkola Estés, no breve livro “O dom da história”, afirma que

“Nas duas tradições das quais me origino, hispano-mexicana por nascimento e de imigrantes húngaros por adoção, o relato de uma história é considerado uma prática espiritual básica. Histórias, fábulas, mitos e folclore são aprendidos, elaborados, numerados e conservados da mesma forma que se mantém uma farmacopéia. Uma coleção de histórias culturais, e especialmente histórias de família, é considerada tão necessária para uma vida longa e saudável quando uma alimentação razoável, trabalho e relacionamentos razoáveis”.

Acreditar no poder do diálogo, da escuta e da cura pelas histórias exige coragem. Ainda mais no país tropical governado por um genocida, que convoca seus lunáticos seguidores a retomarem às ruas, quando o isolamento social é a forma mais efetiva de combate ao crescimento desenfreado da pandemia. O lucro a qualquer custo.

Enfrento o caos por meio da palavra. Redijo esse diário, elaboro narrativas e leio. Ironicamente, comecei a leitura de “Ensaio sobre a cegueira” dias antes da pandemia tomar o Brasil. Procurei, sem sucesso, “As intermitências da morte” na Biblioteca Pública. Recomendação de um amigo. Pela ausência de um, resolvi encarar a, por mim, temida literatura de José Saramago. Uma viagem sem volta. Devorei com os olhos que faltaram para aqueles que habitam essa cruel história. Impossível não medir comparativos, ainda que a régua seja outra. Em seguida, li “A hora da estrela”, último livro de Clarice Lispector, não menos cruel, não menos triste. Agora, descubro “As três Marias”, de Rachel de Queiroz. Procuro o conforto da palavra, por mais dura que ela seja.

Um abraço em meio ao caos.

“Enquanto a noite não chega” (1978), de Josué Guimarães

Visito bibliotecas e livrarias em busca de novas leituras e encontros. Namoro lombadas, papéis e títulos. Reverencio autores conhecidos como velhos amigos, afago cúmplices narrativas percorridas. “Enquanto a noite não chega” chegou a mim na sua versão de bolso (L&PM POCKET) nessas horas dedicadas ao silêncio, ao toque e ao encontro de novas ficções.

Novela de autoria do gaúcho Josué Guimarães, lançada em dezembro de 1978, oito anos antes da morte do autor, narra a história de três personagens, os derradeiros habitantes de uma cidade em ruinas, que vivem em meio aos escombros e fantasmas de um passado ainda presente em suas memórias. E é por meio da memória dessa gente que o narrador reconstrói ao leitor a história da família de Dom Eleutério e Dona Conceição, bem como a história daquele lugar que ainda os abriga.

Os dois, casados há mais de sessenta anos, dividem os dias e a cidade com Teodoro, o coveiro, que permanece no lugar com a promessa de só sair dali após cumprir com sua obrigação, “depois da última pá de terra sobre o último morador da cidade”.

Diante de fotos, lembranças, sonhos e visões distorcidas da realidade, os diálogos de Dom Eleutério e Dona Conceição inundam a narrativa com seus filhos, netos, genros, noras, vizinhos e conhecidos. O casal interage com fantasmas do passado que povoam suas saudades: “as coisas que ele imaginava ver na rua não eram senão lembranças que desfilavam apenas por dentro dos olhos sem muita luz”. A solidão das personagens e o silêncio da cidade dá passagem ao vento, às lebres e à esperança de viajantes que tragam mantimentos e um pouco de erva mate para o tão sagrado chimarrão.

A Revolução de 30, a gripe espanhola, a proibição de línguas estrangeiras e a história do Rio Grande do Sul são cenário para a narrativa construída no desenrolar da trama que, ainda que concisa, dá profundidade e historicidade àquele lugar e seus atuais e antigos habitantes.

“Tambores silenciosos” (1977) foi minha primeira experiência de leitura de Josué Guimarães. Na fictícia cidade de Lagoa Branca, revelada pelo binóculo das irmãs Pilar, uma ditadura em nome da felicidade muda a rotina da cidade. Em “Enquanto a noite não chega” realidade e fantasia, presente e passado, vida e morte se mesclam para narrar alegoricamente a espera e o encontro com o último ponto que nos liga com a vida: a própria morte.

Várzea Cultural de março: Leomir Bruch lança impresso autoral

Em março, fui convidado pelo pessoal da Várzea Cultural, do Jornal Folha da Terra, pra falar sobre o lançamento do “chama”. Na época, recém lançado, na primeira impressão, entusiasmo inicial. Na semana que vem, desembarco em Paraty para a FLIP 2019. Minha terceira vez em terras paratienses, minha primeira vez levando uma publicação para o maior evento literário do país. É hora do “chama” ganhar novos olhares.

Segue o texto, publicado em oito de março:

Mais uma vez recebo o convite para estar aqui. Fico feliz em encontrar espaços abertos nos quais podemos falar sobre arte e cultura e, assim, ampliar nossa voz. No segundo semestre do ano passado, escrevi sobre minha jornada com a Expedição Viramundo, projeto itinerante que acessibiliza espetáculos de narração de histórias da nossa literatura oral brasileira em escolas da rede pública de todo o Brasil. Falei sobre as dificuldades da vida nômade, de morar numa Kombi e da importância da contação de histórias tanto para a formação do nosso imaginário popular e da manutenção dos saberes tradicionais, quanto para a formação de novos leitores.

Naquele momento, estava em Paraty, no Rio de Janeiro, para a Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP. Hoje, de volta ao oeste paranaense, me preparando para a segunda etapa da Expedição, sou convidado a falar sobre meu novo trabalho, agora materializado na palavra escrita: meu primeiro impresso autoral, o Zine intitulado “Chama”.

A palavra sempre me provocou e intrigou, seja ela escrita ou falada, enunciada na voz do povo. Ouvinte e leitor atento, me formei observador de tudo aquilo que me cerca. Na minha trajetória de leitura, referências e exemplos de professoras-leitoras e de minha mãe, Helena, orientaram-me. Das minhas brincadeiras, imaginar e fabular histórias eram minhas preferidas; inventava lugares, seres, coisas e as encadeava em histórias. Brincava de “faz de conta”. Na imaginação, qualquer criança pode ser aquilo de mais bonito que ela puder vislumbrar. E é imaginando que a gente se forma, se constrói e transforma o mundo à nossa volta. Como contador e histórias e artesão da palavra tenho, hoje, como ofício a imaginação.

A poesia é um exercício de imaginação dos mais poderosos. Não há literatura sem o ato de imaginar. E é imaginando que escrevi, organizei, diagramei, imprimi e costurei esse meu primeiro trabalho autoral, o “Chama”.

Como artista independente, optei por publicar esse trabalho em formato de Zine, uma publicação impressa artesanal autoral, criada nos anos 80 pelos movimentos de contracultura e que hoje ganham cada vez mais espaço como forma driblar a burocracia e o alto custo do mercado editorial convencional. O Zine é uma possibilidade para que novos artistas ganhem as ruas, fomentando o mercado alternativo e a economia criativa.

“Chama” reúne trinta e seis poesias e um conto escritos de abril 2016 até janeiro de 2019. O ofício da escrita, o corpo livre, o amor, a vida cigana e a ancestralidade são temáticas que permeiam esses escritos.

“Chama” está à venda pelo instagram @expedicaoviramundo ou pelo e-mail historiasdeviramundo@gmail.com

Problematizações juninas, política e educação

Eu acredito na escola. Mas eu também acredito que – infelizmente – estamos muito distantes de efetivar uma escola preocupada com a formação integral do indivíduo.

talvez 1998, em Maripá, minha primeira escola

Nos últimos anos, a escola, seus agentes e conteúdos entraram no centro da discussão da política nacional. Vislumbrar a educação pública no centro do debate é fundamental e perigoso. A dualidade do problema. A pluralidade de opiniões é importante, porém torna-se perigosa porque toda e qualquer pessoa acredita-se gabaritada a opinar e emitir julgamento de valor acerca de searas de conhecimento muito distantes de sua realidade. De celulares e redes sociais em punhos, destilamos nossas verdades particulares e as aplicamos a menor reflexão ao todo. Falta-nos coerência, leitura, reflexão e empatia.

Mas eu sigo acreditando na escola libertadora e plural. Aprendo com as suas incoerências e desajustes. Ingressei no ambiente escolar aos quatro meses. Filho de trabalhadores, acessei todos os níveis – do berçário à universidade – no ensino público. Na escola, me formei enquanto indivíduo, cidadão e profissional. Em vinte anos de frustrações e desenganos, não deixei de acreditar na escola, na educação. Elas me provocam à mudança, nunca à descrença.

Transformações exigem novas reflexões e – principalmente – práticas. Não que a escola não reflita ou pratique. Ela o faz, porém, na grande maioria das vezes, esvazia de sentido suas práticas. Um emaranhado de discursos e retóricas vazias; conteúdos distantes de sua aplicação cotidiana e real, e lições de moral intermináveis.

Talvez, parte significativa das escolas tenham esquecido que aprendemos fazendo. Observação e ação; modelos e exemplos.

No último final de semana, foi aberta a temporada de festas juninas. Para além de um momento festivo, as escolas aproveitam a data tradicional para fortalecer o orçamento e conseguir financiar ações por conta própria, sem envolvimento da receita municipal ou estadual. Melhorias na pintura, manutenção das estruturas, instalação de ares-condicionados, compra de material esportivo entre outros investimentos possíveis graças ao dinheiro levantado nas festas juninas.

Professores e agentes educacionais desdobram-se em horas a fio de trabalho, organização, ensaios, venda de rifas e arrecadação de donativos. Por vezes, a data esgota-se na preparação e sua celebração e motivação diluem-se em obrigatoriedades. Esquecemos recorrentemente que todo e qualquer gesto no ambiente escolar também ensina e educa.

A escola que passa o ano todo enunciando repetidamente discursos de cuidado e proteção à natureza e ao meio ambiente é a mesma que produz, junto aos alunos e comunidade, uma quantidade absurda de lixo. O mais problemático é a utilização massiva de lixo descartável de uso único como pratos, canudos, sacos e garfos plásticos. Na última festa, vivenciei o absurdo: pamonha embalada em palha de milho sendo servida com prato e garfo plástico. Inutilitários à disposição.

Uma nova consciência educacional e ecológica poderá ser criada quando conseguirmos mensurar nossas ações e práticas além sala de aula, compreendendo o todo envolto no processo de ensino-aprendizagem.

Parte das escolas já abandonou em suas festas brincadeiras tradicionais de São João, como a cadeia e o correio elegante, em alguns casos pelo viés politicamente correto, desconsiderando o caráter cultural e histórico de determinadas práticas e brincadeiras que envolvem  a tradição junina.

Novos olhares sob a educação são necessários. Olhares cautelosos e generosos, que saibam reconhecer avanços e obsoletismos. Revisitar práticas enraizadas e naturalizadas no processo de ensino-aprendizagem, compreendendo o bem comum, a alteridade e o respeito ao próximo – expressões banalizadas pela escola e pela política, mas fundamentais para a construção de uma escola e de uma sociedade mais sábia e justa.

dedico várias horas do dia ao amor.
troco horas de trabalho por namoricos no portão,
não ligo para atrasos com amor justificados.
aos dias mal-amados, solidão

não digo apenas dos amores carnais
terrenos
e suados.
pontuo horas de dedicação às ditas "coisas":
o amor pelas horinhas de caminhar ao poente,
por um mergulho
e até um chá quente.

não falemos de tempo perdido,
o amor exige dedicação.

ao partir, levarei uma vida de amor,
as horinhas de trabalho nós deixamos pra depois.

A arte dos encontros e possibilidades

Existem coisas que a gente faz quando a alma da gente encontra outras almas dispostas. Esses encontros são potência. São encontros geradores de novos encontros e possibilidades.

Encontro requer energia e disponibilidade; encontros não se delimitam apenas ao acaso. É necessário predisposição.

Tenho refletido sobre encontros e possibilidades. A possibilidade é a faísca da transformação. Quando novas possibilidades surgem, ampliamos olhares e distorcemos nossa realidade. É mais um passo para que nos olhemos de fora.

Há quem diga que no interior – geográfico – as possibilidades são restritas. Lá é onde nada acontece. Mas também há novos olhares sobre o interior e suas possibilidades. Para mim, o interior é um exercício do imaginar. Imaginação é pulsação primeira do criar.

Eu nasci, cresci e vivi no interior. Aprendi andar, ler, escrever, imaginar, pedalar e a sonhar no meu lugar. Minha história, aquele que sou, se forma a partir do meu espaço e das minhas provocações. Disputo narrativas com aqueles que depreciam  seu lugar de criação. Negar o seu espaço seria negar sua própria história e identidade.

Não ignoro carências e deficiências que cidades de pequeno porte e distantes dos grandes centros enfrentam. Dispenso o discurso de falta de demanda para arte e cultura nos interiores: em qualquer lugar o povo quer acesso à arte, à reflexão, ao encantamento, à discussão. Olhos e ouvidos dispostos a ver e ouvir encontram-se em qualquer lugar. É preciso reuni-los, formar público, não subestimar capacidade de contemplação e compreensão daquilo que é dito arte.

Minha memória prima de encontro com a arte é fragmentada. São dois quadros de cena e algumas invencionices da memória que eu guardo comigo. Não passava dos dois anos de idade. Menino de olhar ligeiro. Foi em Maripá, meu primeiro interior, cidade de menos de cinco mil habitantes, conhecida por suas orquídeas e tratores. Sentado no asfalto, acompanhado da professora e dos colegas de escola; esperávamos frente a um caminhão transformado em palco, num teatro construído na rua, para assistir ao espetáculo.

Não lembro texto muito menos cenário, mas lembro da sensação que aquilo me causou. Eu já não era mais o mesmo.

Revisito essa memória para me encorajar. Sigo cigano pelos interiores do Brasil e daquela gente que me ouve levando minhas histórias, cadernos e poesias. Me fortaleço naquele menino que sou na eterna espera de mais um grande encontro.

Ontem, em Palotina, no meu interior, esse encontro aconteceu. De uma ideia, uma nova provocação; de uma necessidade de troca e compartilhamento, criamos a I Feira de Arte & Cultura da Universidade Federal do Paraná, Setor Palotina. Construímos um marco simbólico e imaginário naquele espaço e naqueles/as que ali estiveram.

Reunimos artesãs, artesãos e artistas na construção desse espaço pioneiro dentro da Universidade, em Palotina. Ocupamos a acadêmia com as nossas demandas e expressões. Vimos e ouvimos. Nos unimos num movimento de aproximação e encorajamento coletivo.

É inegável a força criadora de uma Feira popular. Energias mobilizadas na construção de novas formas de socialização, produção e consumo; um antigo modo de economia solidária e criativa que avança gerando novas possibilidades de renda e autonomia para seus agentes.

As portas da Universidade foram abertas pelo Centro Acadêmico de Ciências Biológicas – gestão Bertha Lutz, reafirmando a necessidade da manutenção e autonomia das entidades de base do Movimento Estudantil. Laços com a comunidade foram estreitados gerando novos olhares sobre a Universidade, somando forças na luta pela continuidade e avanço da educação pública e da ciência.